Confesso que fiquei bastante abalado ao ver as cenas do americano George Floyd agonizando e dizendo que não conseguia respirar enquanto o oficial de polícia permanecia ajoelhado sobre seu pescoço. O caso tornou-se bastante conhecido mundialmente, especialmente depois que protestos populares passaram a ocorrer em Minneapolis e em muitas outras cidades do mundo. Independente de toda a discussão política entre direita e esquerda que a situação tem levantado, entendo que racismo é algo grave e totalmente incompatível com o Evangelho. Por isso, acredito que vale a pena refletirmos sobre o que a Bíblia tem a nos dizer sobre isso.

Talvez você já tenha ouvido alguém dizer que a Bíblia defende o racismo, ou apoia a escravidão. Houve até mesmo um caso aqui no Brasil em que um conhecido pastor evangélico citou no twitter o texto de Gênesis 9.25 afirmando que os africanos seriam descendentes de Cam, o filho amaldiçoado por Noé. Além de não haver nenhum fato que comprove essa informação, trata-se de um uso totalmente inadequado do texto. 

Sabemos que racismo e escravidão são duas coisas diferentes, mas que historicamente estão conectadas. Durante o período em que a narrativa bíblica se desenvolve, a escravidão foi uma realidade. O problema que ganhou evidência hoje está relacionado com o preconceito com base na cor de pele. A escravidão nos tempos bíblicos, por sua vez, estava ligada com a conquista de outros povos e com o pagamento de dívidas.[1] Foi xenofóbica? Em muitos casos sim. Mas não aconteceu apenas contra pessoas negras. Infelizmente, durante o período colonial, africanos negros foram vítimas da escravidão e trazidos sob condições desumanas para América. Esse fato acentuou a realidade do racismo contra os negros em nosso continente.

É verdade também que a igreja, nos seus primeiros anos, não promoveu diretamente uma luta para acabar com a escravidão. Há textos Bíblicos em que o apóstolo Paulo orienta como escravos e senhores de escravos cristãos deveriam agir. A orientação é que escravos servissem aos seus senhores como quem serve a Deus e que os senhores tratassem seus escravos com justiça, sabendo que têm sobre si um Deus que é justo (veja Efésios 6.5-9 e Colossenses 3.22-4.1). Mesmo assim, vemos na Bíblia uma clara preocupação em modificar o coração humano através do Evangelho e, como consequência disso, a relação de cada indivíduo com Deus e com o próximo. Somente assim uma verdadeira transformação social poderia ocorrer.

Com isso em mente, entendo a carta de Paulo a Filemom nos dá um exemplo claro do verdadeiro poder do Evangelho. A carta foi escrita pelo apóstolo Paulo durante seu aprisionamento (possivelmente em Roma). Filemom era um cristão da região de Colossos e havia uma igreja que se reunia em sua casa. O motivo da carta foi interceder por Onésimo, um escravo de Filemom que havia fugido e se tornado cristão. Paulo orientou Onésimo a retornar ao seu senhor levando a carta na qual ele pedia que Filemom o recebesse, não mais como um escravo, mas como um irmão em Cristo. 

A Bíblia não diz se Filemom atendeu o pedido de Paulo, mas temos tudo para crer que sim.[2] Portanto, podemos imaginar o impacto que esse fato teve na comunidade da época. Com certeza não era comum um escravo retornar para a casa do seu senhor (pois ele poderia ser punido até mesmo com pena de morte). Muito menos comum era um senhor receber um escravo e passar a tratá-lo como um irmão. Creio que somente alguém movido pelo Espírito Santo, que compreendeu o que Jesus fez por toda a humanidade e o propósito de Deus de formar uma única família composta por pessoas de todas as etnias iria, naquela época, atender o pedido feito por Paulo.

O Novo Testamento deixa claro que diante de Deus não há diferença de valor baseado na etnia, condição social, ou sexo (veja Gálatas 3.28 e Romanos 10.12). O livro de Atos relata a conversão de um eunuco africano da Etiópia (Atos 8.26-40). Lemos que o apóstolo Pedro, com receio de juntar-se aos gentios, ouviu uma voz que dizia: “não chame de impuro o que Deus purificou” (Atos 10.15). Lemos também que havia, na igreja de Antioquia, pessoas de diferentes nacionalidades e classes sociais (Atos 13.13). Jesus mandou pregar o Evangelho a toda a criatura e fazer discípulos de toda as nações (Marcos 16.15-16 e Mateus 28.18-20). Fomos todos comprados pelo mesmo sangue, para fazermos parte da mesma igreja, recebemos o mesmo Espírito e pertencemos ao mesmo Senhor, que é abundante em amor, graça e misericórdia. Um verdadeiro seguidor de Jesus não pode ser racista. Se for racista, não é um seguidor de Jesus. As duas coisas não podem andar juntas.

Embora ao longo da história da igreja cristãos tenham falhado por sua falta de envolvimento na luta contra as desigualdades (e em alguns casos tenham até mesmo ajudado a perpetuá-las), houveram aqueles que exerceram um papel importante na luta contra a escravidão e contra a discriminação racial. Posso citar brevemente os exemplos de William Wilberforce e o grupo de Clapham que foram fundamentais para a abolição da escravidão nas colônias inglesas do séc. XIX e, mais recentemente, Martin Luther King Jr. e a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos.

Tive a oportunidade de estar nos Estados Unidos algumas vezes. Infelizmente, pude ver de perto a realidade da discriminação que existe lá. Em uma das situações que presenciei, o preconceito partiu de um oficial de polícia. Sei que não podemos generalizar. Sei que essa discriminação acontece também no Brasil e em outras partes do mundo. Por isso, não podemos vincular a imagem de um país ao Reino de Deus. Para vermos o Reino, precisamos olhar para Jesus. E depois de termos olhado para Jesus através da Escritura, devemos olhar com sinceridade para nós mesmos, buscando crescer na prática do amor a Deus e ao próximo.

Por fim, temos que lembrar que, conforme o relato bíblico, toda a humanidade foi criada por Deus a partir da mesma matéria prima (do pó da terra) e que todos carregamos em nós a imagem e semelhança do mesmo Deus criador (conforme Gênesis 1.27 e 2.7). Que essas verdades guardem nossos corações e mentes e nos livrem de pecarmos. Minha oração hoje é que Deus conforte o coração da família e dos amigos de George Floyd, que aqueles que agem com preconceito se arrependam e que os nossos corações sejam aquecidos com a esperança de que um dia essas injustiças cessarão.

[1] A questão do pagamento de dívidas foi muito bem lembrada pelo Chrystyan Bueno e acrescentada aqui. Obrigado pela contribuição.

[2] Inácio de Antioquia, em sua carta aos efésios, menciona três vezes um bispo de Éfeso chamado Onésimo. Com base nisso, alguns acreditam que Onésimo, o antigo escravo, teria se tornado um bispo importante na igreja do primeiro século!

Pr. Gabriel Lauter
Professor na Faculdade Batista Pioneira e Pastor na Igreja Batista Pioneira em Santa Bárbara do Sul